O cigarro

Por Juliana Laet

Era uma terça-feira sem graça. Com algum sol. Carros na rua, pessoas. A monotonia de sempre. A vida tão entediante que acordei antes da hora. Não tinha nada que me cansasse a ponto de me fazer querer desesperadamente dormir mais 5 minutinhos que fosse.

Nos automáticos passos de todas as manhãs fiz xixi, tomei água. Procurei, na pilha de roupas abandonadas em cima de uma mala de viagem colocada fora do lugar, alguma dentre as minhas únicas 10 combinações de roupa possíveis de usar no escritório. Vesti-me jogando displicentemente o pijama em qualquer lugar da cama. Uma cama de casal, mas raras vezes habitada por mais de uma pessoa. Escovei os dentes, lavei o rosto. Coloquei a marmita num saquinho, peguei uma banana e saí.

Eram 8h56, horário exato para chegar 4 minutos antes do ônibus sair do Terminal Ana Rosa. No ponto, vi a velhinha de crocks amarelo e mochila infantil rosa. Sempre por lá. E mais alguém que a princípio pensei ser uma menina até que a pessoa resolveu virar o rosto na minha direção para acender um cigarro.

Loiro. Cabelo tigelinha, cheio de gel. Uma coisa bem mal feita e feia. Devia ter uns 20 anos, mas aparentava, de verdade, uns 16. Ele acendeu um cigarro e começou a tragar de forma curta, muito curta. Via-se que era o cigarro que o tragava e não o oposto. Tragava-o a ideia de ser fumante, o vício, a atitude, o gosto, talvez. Mas a postura que ele assumiu ao acender aquele cilindro com milhares de elementos químicos distintos, foi de segurança. A auto-estima que se preenchia fracamente a cada não-tragada. Não-tragar, era isso que ele fazia.

Alguns minutos se passaram até que o loiro avistou o seu ônibus. Quando este encostou para que o menino pudesse subir, ele nem sequer quis dar uma última sugada no cigarro. Jogou-o no chão aceso, como estava, praticamente intocado como se tivesse sido acendido naquele momento e não há 5 minutos.

Olhei fixamente para o cigarro durante alguns segundos. Pensei em como uma caixa deles é cara na Europa. Muitas lembranças me passaram pela cabeça naqueles 10 segundos. Meu pai fumante e depois não-fumante de um dia para o outro, minha primeira tentativa de tragar um cigarro oferecido por ele quando eu tinha 9 anos – o que deixou minha mãe extremamente nervosa -, eu e minhas irmãs fumando cigarros imaginários feitos de sulfite, o fumo como algo legal e depois tão condenado pela sociedade entediantemente saudável de hoje.

E, interrompendo aqueles meus pensamentos nicotinados, uma mulher cheia de penduricalhos se aproximou do ponto. Chacoalhando aqui e ali. Vestindo não uma roupa que ela queria, mas a que ela tinha. Uma calça fusô rosa que ia até em cima do umbigo e que estava sob uma outra de moletom preta. Uma regata vermelha infantil e curta que deixava à mostra o espaço entre as primeiras costelas e os seios, estes mirradinhos e sem amparo. Os cabelos bem curtos num corte improvisado. As sacolas, o chinelo no pé.

Ela olhou ao redor. Para nós quatro ali esperando o ônibus que nos levaria ao trabalho. Nós quatro, as vidas aparentemente tão resolvidas. Ali, seguros/as, indo para o trabalho que nos sustenta todo o mês. Naquela escravidão que, paradoxalmente, garante-nos a liberdade. Liberdade? Qual? Essa de escolhermos nossas roupas em vez de vestirmos uma regata infantil vermelha com uma fusô rosa dos anos 1990? Mas e a liberdade de fazer do nosso tempo, o bem mais precioso que existe, o que queremos? De andar carregados/as de penduricalhos pelas ruas sem horário para cumprir?

Mesmo em posse duma liberdade maior e melhor que a nossa ela nos olhou e olhou para o cigarro, mas se sentiu oprimida naquela posição em que estava e disse: “é cigarro, né?”. Abaixou, pegou e saiu fumando e tragando de verdade em busca da leveza de uma nicotina bem tragada que foi abandonada por um adolescente loiro de cabelo tigelinha.

O que para ele talvez não passasse de uma postura diante da sociedade, aquela mesma sociedade de nós quatro ali no ponto, era pra moça dos penduricalhos uma sensação gostosa que duraria alguns parcos minutos. E mesmo oprimida diante do olhar de pessoas que, socialmente, foram colocadas acima dela por cumprirem todos os dias com seus horários e por trabalharem religiosamente as 8 horas diárias, ela não quis abrir mão dessa sensação. Dos restos do menino loiro, ela teve alguma plenitude.

Dos restos de nós, talvez, alguém aproveite algo. Deixar alguma coisa para trás pode ser também deixar algo para alguém. É por nos perdermos que vão nos lembrando, disse uma vez uma poetisa.

10 pensamentos sobre “O cigarro

  1. imprimi para ler com calma, e li!
    desenvolveu bem a narração da estoria, mesmo quando ocorre uma quebra no ritmo para uma pequena reflexão sobre a liberdade para depois voltar e dar sentido a tal com uma analise da situação; liberdade/imagem, paradigma/sociedade.
    Essa reflexão sobre a liberdade acaba sendo o climax da narrativa, trazendo a visão de uma sociedade paradigmada de um ideal insercional social. Viver em uma sociedade de “status” leva a consequência do seguimento de padrões durante a vida. Seguir uma padronização social traz o déficit de criatividade e a psiquê limitada na sociedade hodierna.
    A questão do jovem e seu complicado relacionamento afetivo com o cigarro mostra bem isso; ele pode não gostar mais do parceiro, ou mesmo nunca ter gostado, mas continua com o safadinho por uma questão de imagem.
    Também pelo ato da mulher dos penduricalhos que, de certo modo, constrangida, arrisca uma humilde justificativa no ato de abaixar e pegar um cigarro abandonadamente aceso no chão. E não justifica por pensar que deveria justificar a “sociedade” tal malvista atitude, já que dessa não espera muita coisa, mas por sentir-se intimidada pelo olhar admoestador dessa, que lhe angustia a dar qualquer esclarecimento pela razão e motivo de sua tão perturbadora inexistência.

    Meio brinde a liberdade!

    • Fiquei um tanto perdida nessa prolixidade toda do comentário – hodierna quê? – em todo caso, a análise é boa e é issaí mesmo. Pegou bem o espírito da coisa!

      E sim, uma liberdade maior seria conseguir se desfazer e desconstruir tantos padrões e normas. Seria lindo!

  2. É… me lembrei da gente, adolescentes, bêbadas, catando bitucas pra fumar, ou só filtros, naquele ano novo em Maringá… sem grana, sem noção, sem filtros… hahah

    E essas reflexões de todo o dia, do nosso tempo tão mal gasto em nossos trabalhos, engolindo sapos, com contratos que nos escravizam em nome de viver com higiene e um mínimo conforto… êta vida besta!

    Muito bom o texto! E vamos buscando sair dessa… 5, 10 minutos, 1 hora a mais de sono… sempre valem a pena! :-P

    • Pra que tanta perna, meu Deus? Indignai-vos, clamou Hessel!

      A gente se acostuma muito às coisas. Fico pensando que a gente aceita porque fica se conformando por não ter outro jeito. Mas a verdade é que só não tem outro jeito porque a gente aceita.

      E eu lembro de uma parte ainda mais trash desse ano novo específico. hahahaha..ainda bem que nossos corpos à época eram mais jovens e bonitos. hahahaha

  3. Dificilmente o cigarro teria o mesmo gosto pra gente…se você tem nada ou pouco, qualquer prazer momentâneo pode ser fantástico…

    Existe um tipo de liberdade que nosso filtro econômico deixa de compreender…

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